Em meados de 2018, Bruce Springsteen revisitava sua carreira com shows semanais em um musical autobiográfico encenado na Broadway, em Nova York. Ao saber que um grande amigo de infância estava em estágio terminal de câncer no pulmão, porém, o cantor largou tudo e viajou para a Carolina do Norte, onde encontrou George Theiss em seus momentos finais. A perda despertou em Springsteen, então às vésperas de completar 70 anos, um forte sentimento de solidão e escancarou a única certeza que se tem na vida: a de que um dia, cedo ou tarde, todos vamos morrer — inclusive ele. Theiss era o último membro vivo da primeira banda do artista, The Castiles, que se separou em 1968, após outro integrante morrer na Guerra do Vietnã. De volta a sua casa, em Nova Jersey, Springsteen compôs Last Man Standing (Último homem de pé, em tradução livre), em que reflete sobre a finitude da vida. Dessa canção, desdobraram-se outras ainda mais soturnas, como Ghosts, sobre um fantasma de luz se movendo pela noite, e Letter to You — que dá nome ao estupendo álbum que ele lança nesta sexta-feira, 23. Na letra, o cantor escreve, de joelhos, uma carta para uma pessoa no além sobre os tempos bons e difíceis.
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Hoje, aos 71 anos e quase cinquenta de carreira, Springsteen reafirma-se como a consciência musical da nação americana. Na vida pública, ele nunca deixou de dar opinião sobre política — e o faz especialmente agora, às vésperas de uma das mais polarizadas eleições presidenciais da história dos Estados Unidos. Pouco tempo atrás, pediu que Donald Trump mostrasse respeito às vítimas da Covid-19. Em uma entrevista, ameaçou se mandar do país no primeiro avião para a Austrália caso o republicano seja reeleito. Sabiamente, contudo, a militância e a obra de Springsteen seguiram caminhos paralelos nos últimos tempos. Nas suas músicas, ele é o legítimo “working class hero”, representante da classe trabalhadora americana que traduz os anseios da classe média do país. Letter to You, seu vigésimo álbum, prossegue nessa trilha poética e introspectiva — mas é talvez o trabalho mais pessoal que o artista já fez. Enquanto em outros momentos ele narrou as tragédias de gente comum, seu grande personagem agora é ele próprio diante da velhice.
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O disco marca o retorno da parceria com a E Street Band, com a qual Springsteen ficara sem gravar por seis anos. A reconexão com a banda — um patrimônio do estado americano de Nova Jersey — foi tão imediata que em apenas cinco dias eles gravaram todas as faixas. Letter to You é acompanhado de um belo documentário, que registra o conjunto no estúdio e o clima melancólico daqueles dias. A única faixa em que é possível enxergar alguma referência à realidade política atual é Rainmaker, que musicalmente remete às canções do clássico Born to Run (1975). Nela, Springsteen fala sobre uma “casa em chamas” e adverte que, às vezes, “as pessoas precisam acreditar em algo tão ruim” — para bom entendedor, um comentário desencantado sobre, claro, a Presidência de Trump.
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Mas é na relação com a morte e a esperança de que a vida tenha continuação em outro plano que Springsteen centra suas composições. Na espiritualizada The Power of Prayer, ele evoca o poder da oração, dizendo que já jogou o que tinha de jogar e está próximo de alcançar o paraíso. Em I’ll See You in My Dreams, pontifica: “A morte não é o fim”. Em entrevistas recentes, o cantor declarou que Letter to You é um álbum para o presente, uma carta com suas recordações do rock’n’roll. Que ele seja capaz de sublimar em versos a angústia maior de todo ser humano é a prova de que o setentão Bruce Springsteen continua vivo — e inspiradíssimo.
Publicado em VEJA de 28 de outubro de 2020, edição nº 2710
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