O real e a ficção do controverso julgamento do filme ‘Os 7 de Chicago’

Em 1968, grupos contrários à participação dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã marcharam em direção a Chicago, onde acontecia a Convenção do Partido Democrata. Com o grande número de pessoas, o movimento saiu do controle e manifestantes e polícia entraram em confronto, deixando uma série de feridos e destroços por toda a cidade. O governo processou oito homens, líderes de diferentes movimentos políticos, por supostamente organizarem uma conspiração e instigar manifestantes a um motim. O julgamento durou seis meses e foi acompanhado com fervor pela imprensa e população da época, que se dividiu entre apoiar os réus ou a polícia local. Um mês (e muitas humilhações) depois do início do julgamento, Bobby Seale, líder dos Panteras Negras e único negro acusado, foi separado dos demais por não ter um advogado, carimbando o caso como Os 7 de Chicago, título do novo filme de Aaron Sorkin, disponível na Netflix. No elenco recheado de figurões, Yahya Adbul-Mateen, Eddie Redmayne, Sacha Baron Coehn, John Carrol Lynch, Jeremy Ruby, Alex Sharp, Noah Robbins e Daniel Flaherty dão vida aos oito acusados, em um misto de ficção e realidade. Confira:

Para as colinas

Cena de Os 7 de Chicago em que manifestantes avançam em direção à colina cercada por policiaisReprodução/VEJA.com

Em uma cena dramática, os manifestantes chegam ao parque e deparam-se com uma multidão de policiais armados cercando a estátua do general John Logan, prostrada no topo de um pequeno monte. Ouve-se, então, um grito de “tomem a colina”, e o conflito com a polícia começa. Na vida real, a situação é a inversa. O conflito realmente aconteceu no monte, aos pés da estátua mas, de acordo com imagens da época, os manifestantes chegaram ao local antes da polícia e se estabeleceram na colina, com alguns escalando a estátua de Logan. Logo depois, as forças de segurança chegaram ao local onde estavam os estudantes e, segundo reportagens da época, reprimiram a manifestação com violência, iniciando o conflito.

O tormento de Bobby Seale

Yahya Abdul-Mateen como Bobby Seale, em cena de “Os 7 de Chicago”Reprodução/VEJA.com

Em uma cena perturbadora, Bobby Seale (Yahya Abdul-Mateen), o único réu negro no tribunal, é levado para uma sala onde é atado à uma cadeira com correntes e amordaçado para que não volte a “interromper” o julgamento. A atitude impensável foi tomada depois de o réu tentar, por vários dias, adiar seu julgamento ou representar a si mesmo, já que seu advogado não pôde comparecer ao tribunal por uma emergência médica. Ambos os pedidos, no entanto, foram negados pelo juiz, que “perdeu a paciência” com a insistência do rapaz em exigir os próprios direitos, e mandou calá-lo. Por mais ficcional que a história pareça, não houve na representação nenhum exagero – pelo contrário, ela foi até atenuada. Enquanto no longa bastam alguns minutos amordaçado para que todos se compadeçam e o juiz decida, enfim, suspender o julgamento de Bobby, na vida real, o tormento estendeu-se por dias a fio até que a decisão fosse tomada, enquanto o réu, amordaçado frente à corte, se comunicava apenas por meio de grunhidos e movimentos com a cabeça. O episódio é descrito por Bobby Seale no livro Seize the Time, lançado por ele em 1970. Também não há nos autos do processo qualquer menção a Fred Hampton, co-fundador do movimento Panteras Negras, ter orientado Seale juridicamente, como supõe o juiz no longa.

A agente infiltrada 

Vaitlin Fitzgerald como Daphne, agente infiltrada, no filme ‘Os 7 de Chicago’Reprodução/VEJA.com

Uma sequência de flashbacks mostrada no filme revela que alguns personagens entre os manifestantes eram, na verdade, policiais infiltrados, entre eles Daphne O’Connor (Caitlin FitzGerald), uma agente do FBI que estabelece uma relação próxima, como uma espécie de paquera platônica, com Jerry Rubin (Jeremy Strong). A infiltrada assume o púlpito das testemunhas e dá um depoimento sincero, que não necessariamente ajuda a acusação. Embora houvesse, de fato, agentes infiltrados nos movimentos sociais da época, não há registro da existência de Daphne – o mais próximo disso é Mary Ellen Dahl, uma policial infiltrada de Chicago que testemunhou ter ouvido Abbie Hoffman planejar um motim. Nenhum policial nomeado como testemunha no filme aparece nas transcrições do julgamento.

Piadas no tribunal

Jeremy Strong e Saha Baron Cohen como os ativistas Jerry Rubin e Abbie Hoffman, respectivamenteReprodução/VEJA.com

Se você riu com alguma piada de Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen) e Jerry Rubin (Jeremy Strong) durante o longa, saiba que a dupla estava realmente determinada a tirar o juiz Julius Hoffman (Frank Langella) do sério. Segundo a transcrição do julgamento, usada como base para boa parte dos diálogos, o magistrado fez questão de esclarecer que não era parente de Abbie, ao que ele respondeu com piadas sobre uma possível paternidade. Os dois ainda apareceram de toga, com um uniforme de policial por baixo, para irritar o juiz, que tinha fama de zelar pela etiqueta e decoro no tribunal. 

Testemunha barrada e soco na cara 

Michael Keaton como Ramsey Clark, ex-promotor geral dos Estados UnidosReprodução/VEJA.com

É verdade que Ramsey Clark (Michael Keaton), ex-procurador geral dos Estados Unidos, foi chamado como testemunha “surpresa” pela defesa dos sete de Chicago, mas boa parte do que se segue a partir daí é pura ficção. Assim como no filme, Clark foi ouvido pelo juiz sem a presença do júri, para que decidisse se permitiria que o depoimento fosse apresentado aos jurados. No filme, Clark é indagado sobre uma ligação com o então presidente Lyndon Johnson, e revela que decidiu não entrar com nenhum processo contra manifestantes envolvidos no conflito, porque o tumulto na Convenção Democrata teria partido da polícia. O juiz recusa o depoimento bombástico de Clark, e, em uma explosão de fúria, David Dellinger (John Carroll Lynch), um dos sete acusados, soca um dos seguranças do tribunal. Oficialmente, não houve qualquer menção a um telefonema com o presidente, o mais próximo disso foi uma ligação com o promotor Thomas Foran, em que cita a investigação de uma ação policial específica depois da convenção. Clark respondeu ainda questões sobre a organização do evento e a comunicação com autoridades municipais, mas nada revelador como mostra o filme, embora o processo, de fato, só tenha sido movido depois da saída de Clark da promotoria. Não houve também nenhuma pancadaria durante o tribunal, muito menos da parte de Dellinger, que era um pacifista convicto.

Leitura triunfante, mas na voz e na hora errada

Eddie Redmayne como Tom HaydenReprodução/VEJA.com

Ao longo do extenso julgamento, que se estendeu por seis meses, houve, de fato, um momento em que nomes de soldados americanos mortos na guerra do Vietnã foram lidos em voz alta, mas a vida real foi menos triunfante do que o final do longa, em que Tom Hayden (Eddie Redmayne) desafia o juiz ao ler uma lista de quase 5.000 nomes em seu argumento final, enquanto o magistrado tenta, sem sucesso, interrompê-lo em meio a aplausos da plateia. Na realidade, David Dellinger, o pacifista convicto entre os sete, foi quem leu os nomes, no dia 5 de outubro de 1969 — onze dias depois do início do julgamento, e meses antes do seu fim. Não houve, porém, protestos raivosos do juiz — Dallinger leu o manifesto antes do início da sessão, e o magistrado o interrompeu assim que iniciou as atividades do dia.

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By Giovana Frazolini