Grace Fraser (Nicole Kidman), psicóloga, mora modestamente — para os padrões em que foi criada. Junto com o filho pré-adolescente Henry (Noah Jupe) e o marido, o oncologista pediátrico Jonathan (Hugh Grant), ocupa uma townhouse de babar em Manhattan (preço médio no levantamento imobiliário do ano passado, 16 milhões de dólares). Nada, porém, que se compare ao apartamento de seu pai, Franklin Reinhardt (Donald Sutherland), um daqueles latifúndios aéreos do Upper East Side que começam lá pelos 50 milhões de dólares — sem incluir as obras de arte e o mobiliário raro. Mas Grace é feliz no casamento, na profissão e como mãe. Seu contentamento e seu temperamento generoso estão na raiz de sua reação compreensiva a Elena Alves (Matilda De Angelis), a jovem linda e voluptuosa do Harlem Hispânico cujo filho foi paciente de Jonathan e que agora frequenta, com bolsa, a mesma escola exclusiva em que Henry estuda. Convidada a integrar a comissão de mães que organiza a gala beneficente da escola, Elena é recebida com sorrisos falsos e esnobada — e vinga-se levantando a blusa e amamentando o bebê ali à mesa. Grace fica desconcertada; as outras mães ficam horrorizadas. Mas, nos dias seguintes, Elena testa a serenidade de Grace. Nua em pelo, puxa conversa com ela em um vestiário. Faz confidências íntimas; dá-lhe um beijo inesperado; e, por fim, comparece à gala usando mais decote que vestido e alvoroçando os convidados. Essa é a noite em que Elena será assassinada — e em que a vida de Grace será repentinamente virada do avesso, com violência e com terrível exposição pública.
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Assim como Big Little Lies, a criação anterior do produtor David E. Kelley, a minissérie The Undoing (Estados Unidos, 2020), que estreia neste domingo, 25, às 22 horas, na HBO e HBO Go, combina melodrama e thriller no seu mergulho nos segredos que as vidas muito privilegiadas e aparentemente perfeitas escondem. Mas, sob o comando da cineasta dinamarquesa Susanne Bier, ela excede em voltagem a antecessora: ex-integrante do movimento Dogma e ganhadora do Oscar por Por um Mundo Melhor (além de um Emmy pela minissérie The Night Manager), Susanne tem preferência nítida por tramas em que um acontecimento inesperado desencadeia uma espécie de apocalipse pessoal para seus protagonistas — um cenário de destruição e também de revelação. Aquilo que sempre parecera verdadeiro se prova falso, o que se dava como seguro se torna precário, e o caminho à frente desaparece.
A direção perita de Susanne Bier amplifica essa sensação de perda de controle por meio de mudanças de ritmo e tonalidade orquestradas com afinação impecável: juntamente com Grace, o espectador se sente como se estivesse sendo levado por uma correnteza que às vezes se espraia, outras vezes ganha o volume e a velocidade de uma corredeira, e em outras ainda deságua em um turbilhão. Ao sabor dessa corrente, a cada novo desdobramento da trama perde-se, recupera-se e daí se perde novamente a confiança que se deposita neste ou naquele personagem — e Susanne tira todo partido das seis horas de narrativa à sua disposição na minissérie, desenhando em detalhe cada coadjuvante para assim aumentar o número de pistas e possibilidades e expandir o escopo do enredo.
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Nem todas as revelações, porém, são externas a Grace. No meio dessa ruína do seu mundo perfeito, também ela se descortina para si mesma. A profissional independente, que dispensa a fortuna do pai e a aprovação dele ao marido, se descobre um outro tipo de mulher: a que acredita demais e projeta em um homem ideais românticos que não correspondem à realidade — e que perdoa com mais facilidade do que talvez seja aconselhável. Grace descobre, na verdade, que nem sequer sabe quem Jonathan é realmente — um aspecto em que The Undoing se sai particularmente bem graças à decisão de Susanne de entregar o papel a Hugh Grant, um ator que merece muito mais crédito do que se costuma dar a ele. Grant anda em uma fase libertadora da carreira, aquela em que um intérprete conhecido por um tipo se sente à vontade para fazer dele o que lhe convenha — o que, neste caso, significa usar seu célebre charme não só da maneira cativante de costume, como também conferir a ele sobretons sinistros, patéticos, arrogantes ou até mesmo monstruosos, conforme o episódio, tornando as reviravoltas do enredo ainda mais atordoantes.
Muito do que torna The Undoing tão sedutora, é claro, vem dessas reviravoltas, assim como do prazer voyeurístico de observar a intimidade dos fantasticamente ricos — com o que ela tem de inacessível mas também de sórdido, numa curiosidade da qual o personagem de Edgar Ramírez compartilha a despeito de si mesmo. Mais próximo da vítima na hierarquia de classe, o detetive que investiga o assassinato mal esconde o espírito revanchista com que invade a vida dos suspeitos e, sobretudo, com que acossa Grace, num misto de desprezo e desejo que rapidamente ganha um caráter sexual — do qual Grace se aproveita ora acenando com fragilidade, ora com dominação.
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É daí que vem a outra parte da eletricidade de The Undoing: do modo audacioso como David E. Kelley e Susanne Bier constroem o ideal feminino — e, de certa forma, feminista — representado por Grace, desmontam-no e então o reerguem em outros arranjos. Na interpretação de Nicole Kidman, cândida na superfície e cifrada logo abaixo dela, Grace não se desdobra apenas entre os papéis de mãe, filha, esposa e profissional; ela se reparte também entre tudo que as mulheres já foram, o que são mas escondem e o que aspiram ser. Se a moldura de The Undoing é folhetinesca, o quadro que ela contém é uma linda balbúrdia de minúcias, sutilezas e contradições.
Publicado em VEJA de 28 de outubro de 2020, edição nº 2710
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