Se não tivesse acontecido de fato, pareceria arroubo de roteirista excessivamente imaginativo: em pleno ano de 1969, o juiz mandou que o réu, único negro entre os acusados, permanecesse amarrado e amordaçado na sala do tribunal, por “insubordinação”. Tomou essa atitude chocante depois de ter negado repetidas vezes a Bobby Seale, um dos líderes dos Panteras Negras, seu direito a um advogado de defesa; o advogado nomeado estava hospitalizado, mas o juiz Julius Hoffman não viu nisso nenhum impedimento processual. Se havia outros advogados presentes ali, que se considerasse o direito cumprido, ora, ainda que Seale não fosse cliente deles e não quisesse sê-lo. Detalhe adicional: Seale não estivera presente aos eventos pelos quais o conjunto de réus estava sendo julgado. Quando, em 28 de agosto de 1968, a polícia partiu com tudo para cima dos manifestantes que havia dias se reuniam em Chicago, ele já tinha ido embora. A violação cometida pelo juiz foi tão abusiva que o caso do Pantera Negra acabou sendo desmembrado do restante do processo. Restaram, assim, “os 7 de Chicago”, como ficaram conhecidos os ativistas de tendências diversas, das mais brandas às mais combativas, julgados pelos protestos que marcaram a Convenção Nacional do Partido Democrata no verão de 1968. Por cerca de seis meses, o que se viu no tribunal foi uma farsa tão sinistra nas intenções e tão escancarada na execução que muitas vezes chegou a ser cômica.
Nem tudo que é cômico, porém, é engraçado, argumenta o roteirista e diretor Aaron Sorkin no agilíssimo Os 7 de Chicago (The Trial of the Chicago 7, Estados Unidos, 2020), que está disponível na Netflix a partir desta sexta, 16 — e cerceamento de expressão, distorção da Justiça, abuso de força armada e achaque por meio de poder político não são piada, ainda que perpetrados por bufões como Julius Hoffman (no filme, Frank Langella, em uma atuação brilhante em sua obtusidade) ou, nem é preciso dizer, Donald Trump, cujo governo é o verdadeiro alvo desta formidável reencenação.
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Sorkin é o mais notável roteirista em atividade no cinema e na televisão, e construiu sua carreira como uma defesa contínua dos mecanismos que garantem a democracia e, ao mesmo tempo, como uma investigação dos vícios e tentações que a ameaçam. Da série The West Wing à mais recente The Newsroom, e de A Rede Social a Steve Jobs, seus roteiros dramatizam as várias facetas do eterno cabo de guerra entre poder e abuso. Os 7 de Chicago, entretanto, vai algo além: ao assombro por a democracia ter se demonstrado tão frágil no adiantado ano de 1969, soma-se a consternação por, cinco décadas depois, ela ter novamente degenerado até um ponto ainda mais extremo. Racismo declarado e ativo, repressão e criminalização da expressão pública, chicanas políticas e jurídicas empregadas na coação de desafetos — aquilo que o filme reconstitui é o que se repete, hoje, no noticiário.
De facções radicais a facções brandas, os manifestantes que se juntaram em Chicago em 1968 queriam protestar sobretudo contra a atitude pouco enérgica de Hubert Humphrey, o candidato democrata à Presidência, quanto à presença americana no Vietnã e à escalada do recrutamento compulsório de tropas. Todos os grupos que rumaram para a cidade pediram à prefeitura a designação de um local para se reunir: todos tiveram o pedido negado, numa manobra para tornar ilegais as manifestações. Foram assim mesmo, e toparam com a violência crescente da polícia — que, segundo o relatório interno elaborado pelo governo do presidente Lyndon Johnson, foi a incitadora da batalha que eclodiu em 28 de agosto, pela força desproporcional com que agiu e por ter deliberadamente encurralado os manifestantes em um parque. Ocorre que Humphrey perdeu a eleição para o republicano Richard Nixon, cujo procurador-geral detestava o antecessor — e, para fazer pirraça ao antigo ocupante do cargo e porque compartilhava dos pendores autoritários de seu chefe, ele decidiu desprezar as conclusões da investigação e processar as lideranças. Com o ditatorial e petulante Hoffman batendo o martelo no tribunal, o jogo já começou com as cartas marcadas.
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A palavra-chave nos roteiros de Sorkin é “dramatização”: quando necessário, ele rearranja datas, fatos e personagens para chegar pelo melhor caminho à essência que deseja comunicar. A história de Os 7 de Chicago, contudo, pouco exige esse recurso: nem o episódio do ex-procurador-geral da República que teve o testemunho jogado fora (ele falou pela defesa) teve de ser inventado, tais as doidices que transcorreram ali. Onde Sorkin põe sua marca inconfundível é nos diálogos ultra-articulados, incisivos e saborosíssimos, magnificamente defendidos por um elenco que inclui Mark Rylance, Sacha Baron Cohen, Jeremy Strong, Michael Keaton, Joseph Gordon-Levitt, Yahya Abdul-Mateen II e Eddie Redmayne (este, no papel de Tom Hayden, que depois teve longa carreira política e se casou com a atriz e também ela ativista Jane Fonda). É duvidoso que tanta gente tenha esgrimido as palavras com tanta eloquência, durante tanto tempo, no mesmo lugar. Sobre o que Sorkin tem a dizer por meio de seus personagens, porém — aí não há dúvida nenhuma.
Publicado em VEJA de 21 de outubro de 2020, edição nº 2709
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